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Interview

Alexandre
Charro

Charro é diretor audiovisual, pesquisador, roteirista e
fotógrafo. Graduado em Comunicação Social, com pós-
graduação em Semiótica Psicanalítica e mestrado pelo
Núcleo de Estudos da Subjetividade (PUC-SP),
desenvolveu uma pesquisa que investiga as interseções
entre demônios, o invisível, algoritmos e cinema.
Com um olhar voltado para as possibilidades estéticas e
narrativas no audiovisual, Charro se interessa por
fabulação, arquivos e ficção, explorando as relações
entre cinema, filosofia e performance. Seus projetos
integram dramaturgia e estética, sempre propondo
experiências imersivas. Em 2024, Give Back Internet —
um curta-metragem experimental criado inteiramente
com inteligência artificial — tem participado de vários
festivais, com menções honrosas e prêmios.
Realizou uma residência artística na galeria Void, em
Atenas, onde colaborou com o fotógrafo francês Antoine
D'Agata para expandir as fronteiras da linguagem
fotográfica e explorar as nuances do registro da
realidade. Foi cofundador do estúdio criativo Kultur
Studio e da revista +SOMA, além de ser representado
pela produtora Zohar Cinema.
Dirigiu filmes comerciais para marcas como Nike, VICE e
IBM. Atualmente, está envolvido no desenvolvimento do
longa-metragem TANTA, na edição do média-metragem
de terror INTERREGNUM e na construção do selo
audiovisual Perpetuum Cinema.

1. Pode nos contar um pouco sobre sua trajetória no audiovisual e como ela influenciou sua abordagem criativa?

Apesar de não ter uma família ligada ao universo artístico, desde cedo me interessei por música, tive banda e o cinema apareceu pela possibilidade de criar mundos complexos, onde o que cada vez mais me fascina é o que não é dito nem mostrado, mas está lá. Fui sócio fundador de uma revista e portal no fim dos anos 2010, chamada +SOMA. A gente trabalhava com publicidade e projetos artísticos e foi uma época onde pude experimentar bastante, misturando linguagens e debatendo ideias. Por outro lado, foi tudo muito intuitivo, pois não, especialmente na área audiovisual, tive que ir aprendendo à medida que ia fazendo, o que vejo que acabou prejudicando um percurso que parecia estar indo bem. Além disso, os projetos mais autorais têm uma história irregular também. Meu primeiro curta, que fiz na cara e coragem em 2002, que se chama Problema Épico, eu ainda não terminei. E isso acontece com vários filmes que tenho guardados, com 70% aprox, mas por algumas questões que trabalho até hoje, ainda não foram concluídos. E o curta O que me move é a dor, foi uma retomada, por isso é especial.

2. Como seu background em Psicanálise e Semiótica contribuiu para o seu processo criativo na realização de filmes?

O campo dos conceitos, da filosofia e psicanálise sempre me deu muita força. Desde que me formei em 2003, não parei de estudar. Muitos cursos e acompanhando aulas em caráter mais livre. Acho que a filosofia é um tipo de centro, ou raiz que me ajuda a desenvolver linguagens ou cenas que adicionam camadas às imagens e sons e às relações entre eles, para pensar sempre na relação entre o filme e o espectador. Valorizo muito o espectador, sempre considero muito importante dar um passo atrás e tentar assistir o filme com alteridade. É sempre em relação que as coisas acontecem e com um filme não é diferente. Não sou adepto de uma ideia mais narcísica de que a obra é puramente a ideia de um realizador.

3. Como você descreveria sua relação com a fotografia e o cinema, e como essas duas formas de expressão se intersectam no seu trabalho?

Fotografia é um momento do corpo a corpo. De uma relação de mútua contaminação. Tento fazer desabar a ideia da hierarquia que a presença de uma câmera traz. É um exercício técnico, mas também muito intuitivo, onde uma mínima diferença num enquadramento pode mudar tudo. Apesar da técnica ser em grande medida o que baseia a noção de antropocentrismo, acho que ela pode ser usada de uma maneira mais criativa, justamente para desestabilizar a hierarquia do homem e abrir outras formas de relação.

4. Qual foi o ponto de partida para criar A Dor É O Que Me Move?

O filme começou como uma parceria criativa com uma amiga maquiadora. Filmamos algumas cenas com a Julia, atrás, em 2017. Mas como muitos outros filmes, o material ficou “amadurecendo” por alguns anos kkkrying. É sempre meio dolorido ter muitas ideias e excitações num projeto e o tempo ser tão diferente. O filme então foi sendo trabalhado muito aos poucos e na pandemia retomei. Queria fazer um filme onde o som e a imagem não tivessem uma relação redundante. Minha ex-companheira e mãe da minha filha é atriz e escrevi dezenas de textos para que as palavras pudessem ser como um fluxo de pensamento e também mensagens de rompimentos a uma mentora espiritual. Geralmente, as ideias que acompanham uma certa evolução espiritual são sempre positivistas e o filme tenta romper com isso, sem que seja uma reivindicação de uma verdade universal, mas uma verdade singular. E as imagens são mais oníricas. O filme tem muitos detalhes e camadas e isso foi acontecendo durante um bom tempo de montagem e intervalos.

5. O filme combina elementos de ficção, documentário e material de arquivo. Como foi o processo de mesclar essas linguagens em uma narrativa única?

Só de ler a pergunta já me dá uma sensação de muita potência. Juntar essas linguagens e materiais é muito potente. Um filme que sempre gosto de rever é o Sans Soleil do Chris Marker. É uma carta, são imagens de viagens, mas a poesia e a vida que estão ali, acho que são muito longevas. Acho que é sobre criar sensações, sobre se abrir ao outro. E isso dá trabalho, pelo menos para meus filmes, não é uma coisa que está dada desde o início. Está dado como desejo, mas a articulação de material, de sons, imagens, tempo, isso é muito difícil. Que bom que vocês perceberam isso!

6. A influência de Marguerite Duras é evidente no filme. Quais aspectos do trabalho dela mais te inspiraram, e como eles aparecem no seu projeto?

Sim, é sobre a dor. Sobre ter espaço para que a dor possa existir. É um paradoxo talvez. Mas as cartas dela eu tive contato com o filme quase pronto e tive que colocar uma citação porque tinha tudo a ver. Apesar de ser em contextos muito diferentes. A voz do filme não tenta ser uma voz onipotente, não mais uma voz onipotente com função de exprimir um todo, mesmo que aberto. Pelo contrário, são vozes que atrapalham o encadeamento harmônico da composição de uma realidade de massa. Mas esse atrapalhar não é um interesse atual, é apenas o efeito colateral de uma vontade de existir fora dos termos dominantes, que no caso é uma ideia de que sempre está tudo bem.

7. O filme foi criado ao longo de cinco anos. Como você navegou pelos desafios e transformações pessoais durante esse tempo?

Essa é uma questão mesmo. Acho que é um desafio para a vida toda. Acho que concluir esse filme foi uma etapa muito importante em 2024. E desde lá já concluí outros dois filmes. Então hoje consigo enxergar uma transformação, mas durante o processo foi mais as angústias de lutar contra o tempo e as necessidades da vida e a uma certa “presencialidade” que também é necessária para terminar os filmes.

8. A dor é um tema central no filme. O que você espera que o público sinta ou reflita enquanto assiste?

Como o filme tem muitas camadas, acho muito legal quando as pessoas falam o que sentem, especialmente as mulheres. É também um filme sobre as mulheres, feito em grande parte por um homem. Pois a montagem foi feita solitariamente por mim. Então acho que a ideia de alteridades de novo volta. Acho que as pessoas podem fazer trabalho sobre o que querem, ou sobre o que as atravessa. Mas um homem fazer um filme sobre mulheres hoje em dia é delicado. Mas de novo, a arte no meu entender, não é sobre o artista, mas sobre relações. Então acredito que quando a gente se limpa de certezas e se abre, com risco, obviamente, o resultado torna essa conversa mais honesta e acho que isso está no filme. Porque a dor é uma coisa muito singular. Como eu posso escrever sobre a dor do outro? É o devir que precisa estar em ação, e não o Eu. Então acho que por mais clichê que possa soar, cada pessoa vai ter uma sensação e isso é o que me move a continuar fazendo filmes.

9. Na sua opinião, qual é o papel do cinema experimental hoje em um mundo dominado por narrativas clássicas e algoritmos?

Por um lado, acho que com a pasteurização, a experimentação acaba sendo mais valorizada. Por outro lado é um desafio maior, porque estamos mais acostumados com uma estrutura de dramaturgia e linguagem e é mais difícil aceitar experimentações. Então fazer filmes experimentais que ninguém vai querer ver é um caminho. Mas no meu desejo está sempre essa relação. E também temos que escolher as lutas e não dá para ficar dando murro em ponta de faca a vida toda. Então não há uma resposta pronta. No mestrado em estudos da subjetividade passei pelo conceito de governamentalidade algorítmica e estudei teoricamente as IAs. Foi quando pensei que era o fim do cinema e de trabalhar com cinema. Mas então resolvi adentrar tecnicamente nas IAs em código aberto durante 2024 inteiro. E acabei de finalizar um curta inteiro feito com IA. Tem uma crítica no filme, usando a própria IA para fazer essa crítica. Mas para que um filme tenha uma consistência, para dizer o mínimo, dominar as ferramentas é dificílimo. Então acho que é mais uma ferramenta que vai aumentar ainda mais as desigualdades. Fazer filmes experimentais não é apenas uma experimentação estética, mas é como que uma necessidade. Em 2024 concluí 3 filmes, mas minha saúde ficou bem debilitada. Então, do ponto de vista pessoal, vou usar a IA como uma ferramenta, mas onde ela esteja exposta, pelada. Mas no geral acho que o futuro não é mais o que era.

10. Quais diretores ou obras cinematográficas te influenciaram ao longo da sua carreira? Há exemplos específicos que impactaram esse projeto?

Especificamente e diretamente nesse projeto, acho que o Chris Marker. Mas os que eu sinto uma conexão posso mencionar o Eder Santos, sobre a crítica ao cinema “puro”. A Letícia Ramos, o Cao Guimarães, o Bill Viola, a Paula Garcia, a Virgínia Medeiros. E sempre lembro do filme Persona, que por enquanto eu assisto e ainda acho relevante.

11. O que você acredita que diferencia o cinema brasileiro contemporâneo no cenário global?

É uma luta. A gente precisa pagar os boletos e muita gente trabalha na área. Então é isso. Estamos no mundo capitalista cada vez mais algoritmizado. Se eu quero fazer um filme que mostra uma jangada boiando no mar por 3 horas, eu gosto. Mas pouca gente vai gostar. Se você pode se dar ao luxo de não levar as relações capitalistas em conta, sorte sua, aproveite seu privilégio. Mas a maioria não pode. Então é uma luta ainda mais difícil porque você quer fazer, precisa fazer, então é uma negociação constante e desgastante. Mas no geral, acho que falta um pouco de referências para o pessoal no Brasil que detém o dinheiro. E você fala com alguém da Netflix, por exemplo, sobre estrutura de dramaturgia e eles leram 2 páginas sobre a jornada do herói, então vão perguntar onde estão os arcos e se não forem ditos pelo personagem de forma explícita, eles querem que mude. Enquanto que nos EUA, apesar dos pesares, uma pessoa que trabalha na mixagem de som, vai te dar uma aula sobre as coisas mais estranhas e experimentais do som, enquanto faz o Homem-Aranha. Então acho que aqui de maneira geral existe uma soberba, além da concentração de renda, entre outras coisas. O que torna tudo mais difícil… Mas tem muita coisa incrível aqui também.

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Fotos: Vagner Jabour

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